Nota do editor: as opiniões expressas neste artigo são exclusivamente do autor e não refletem necessariamente as opiniões do WeLiveSecurity e da ESET.

Provavelmente este não seja o primeiro lugar que se esperaria ler sobre John McAfee - uma pessoa que havia deixado o mundo dos vírus de computador há muito tempo para atividades mais controversas. No entanto, John foi uma pessoa fundamental na formação do setor de segurança da informação. E o que é mais importante para mim, foi ele quem me deu meu primeiro emprego assim que terminei o ensino médio, quando eu tinha apenas 19 anos. John foi meu mentor e meu amigo. Eu acho - ou pelo menos espero - que isso me dá um certo direito de poder compartilhar algumas palavras sobre ele no WeLiveSecurity. Se você está acostumado a vir a este site para obter dicas práticas sobre como proteger seu computador ou para ler sobre as últimas ameaças cibernéticas, obrigado por me permitir este espaço.

Para quem não sabe, espalhou-se pelo mundo a notícia de que John aparentemente cometeu suicídio em sua cela na prisão na Espanha. Ele foi detido pelas autoridades do país depois de ser procurado por supostos crimes financeiros nos Estados Unidos. A justiça espanhola havia decidido na véspera de sua morte que sua extradição para os Estados Unidos poderia ser realizada.

Muitas pessoas que conheci ao longo dos anos, amigos próximos e distantes, entraram em contato comigo para compartilhar suas condolências.

Meus sentimentos são contraditórios. Talvez a melhor forma de descrevê-los seja a alternância entre momentos de tristeza e momentos em que me sinto paralisado.

A internet está cheia de sites nos quais falei do meu tempo trabalhando para John em suas várias empresas, tanto mais formalmente aqui no WeLiveSecurity quanto em lugares como o Reddit, onde conversas mais informais são a norma.

Não sei bem por onde começar, então acho que devo começar do início: como conheci John.

Conhecendo John McAfee

Ano de 1985. Eu no instituto era um daqueles jovens nada popular no ensino médio, interessado em computadores, jogos de RPG (D&D), livros e filmes de ficção científica e todas aquelas coisas que, embora agora sejam cool, deixam você marcado como um nerd. Utilizei o mundo on-line dos Bulletin Board Systems (BBS), os precursores dos atuais fóruns da web e plataformas sociais como forma de escapar de tudo isso.

Figure 1. BBSes ran on computers with BBS software, modems, and lots of black coffee.

Figura 1: Os sistemas de BBS funcionavam em computadores com software BBS, modems e muito café preto.

Um dos BBS que eu costumava discar com meu modem era o Homebase BBS em Campbell, Califórnia, simplesmente porque era uma ligação gratuita de onde eu morava em San Jose, bem ao lado. Muitos BBSs estabeleciam limites de tempo nos quais alguém podia permanecer neles para liberar o modem para a próxima chamada, bem como taxas estritas de upload/download para evitar sanguessugas de arquivos (pessoas baixando arquivos, mas que nunca publicavam qualquer conteúdo, um paralelismo que pode ser familiar para os usuários do software P2P de hoje em dia). Homebase foi mais generoso do que a maioria com ambas coisas. Tudo isso foi antes da Internet, ou pelo menos antes da World Wide Web decolar, e os BBSs costumavam ser locais e normalmente só podiam suportar apenas uma ou duas.

Certo dia, apareceu um aviso no BBS informando que estava sob nova propriedade. John McAfee, um de seus usuários, o comprou do proprietário e o transferiu, com computadores, modems, linhas telefônicas e tudo, para a casa de campo reformada que ele alugou na Cheeney Street em Santa Clara. Isso ocorreu vários anos antes dele criar sua empresa de mesmo nome, a McAfee Associates, que lidava com vírus de computador. Na época, o trabalho diário de McAfee era como engenheiro na Lockheed Missiles and Space Company na vizinha Sunnyvale, Califórnia, considerando que este era um negócio paralelo.

A compra do BBS por John fazia parte de um plano para criar um grupo empresarial de sysops (operadores de sistema; as pessoas que dirigiam o BBS) chamado National BBS Society (NBBSS). Quando o conheci, ele também tinha outros negócios, como o Instituto Americano de Práticas Sexuais Seguras (AISSP), que fornecia cartões indicando quando a operadora havia feito um teste de IST e era HIV negativo na época (o que tem alguns paralelos interessantes com o atual estado de vacinação da Covid-19), à venda de uma placa de som para PC que só tinha conexões de entrada (por exemplo, só tinha uma conexão para microfone, não para alto-falantes). Isso ocorreu cerca de uma década antes das placas de som serem construídas em placas-mãe de PCs e tinham uma base de clientes pequena, que variava de usuários cegos de computador com reconhecimento de fala a uma universidade do Havaí que comprou vários deles para coletar a "fala" de golfinhos usando um conjunto de microfones subaquáticos. Alguns desses primeiros usuários de placas de áudio se tornaram os primeiros clientes da McAfee para seu software antivírus. Consequentemente, trabalhamos para garantir que o software antivírus fosse compatível com leitores de texto para fala, teclados Braille e outros dispositivos de assistência.

Figura 2: Cartão do Instituto Americano de Práticas Sexuais Seguras. Frente (esquerda) e verso (direita).

Hoje chamamos essas coisas de "empregos paralelos" e são reconhecidas como parte da "economia de gig". Para minha mente adolescente, todos eles pareciam muito empreendedores e estava claro que ele tinha todas as ferramentas para isso.

Nada decolou, mas sua compra do Homebase BBS o levou a organizar festas com pizza para seus usuários, e eu finalmente consegui conhecê-lo pessoalmente em 1986, depois de um ano ligando para o BBS. Alguns de nós, usuários, nos tornamos os primeiros funcionários.

John sabia muito bem o que funcionava para ele e o que não funcionava, e como os negócios AISSP e NBBSS não estavam ganhando nenhum impulso crítico, ele gradualmente começou a diminui-los, junto com o negócio de placas de som.

Como novo negócio, ele se enfocou em um software antivírus, disponibilizando-o de forma on-line como shareware por meio do BBS. O shareware era uma espécie de sistema para o software no qual as pessoas podiam testá-lo antes de comprá-lo. No caso da McAfee, as pessoas podiam usar o software por trinta dias e, em seguida, removê-lo de seus computadores ou pagar por ele. Isso também se aplica a organizações, que precisam adquirir uma licença caso quisessem continuar usando o software. Embora baixar versões de teste de software algo bem normal hoje em dia, naquela época o software era vendido comercialmente em caixas embrulhadas em plástico nas prateleiras de lojas, e isso era uma espécie de aposta. O Sr. McAfee não inventou o modelo de negócios de shareware ou o software antivírus, mas foi o primeiro a popularizá-los.

O primeiro indício que tive de que isso seria diferente dos empreendimentos comerciais anteriores do Sr. McAfee foi quando ele apareceu nas notícias da televisão local falando sobre o worm Morris. Alguns meses depois, ele reapareceu, mas desta vez falando sobre o vírus de computador DataCrime. Para mim, com apenas dezenove anos, que tinha acabado de terminar o ensino médio e estava estudando geografia cultural na universidade local e sem saber o que queria fazer da minha vida, parecia uma oportunidade de ouro: perguntei ao Sr. McAfee se eu poderia ir trabalhar para ele, quem sabe atender o telefone, escrever cartas e, para minha surpresa (e sorte), ele me contratou na mesma hora.

Fiquei com John enquanto a empresa crescia, primeiro em sua casa e depois em uma série de parques empresariais. Também cresci e acabei gerenciando todo o suporte da empresa, escrevendo toda a documentação, criando o primeiro departamento de controle de qualidade e ocupando diferentes funções em uma empresa em rápido crescimento. Também acabei assumindo a gestão do BBS do Sr. McAfee, tornando-me seu operador de sistemas.

Figura 3: CPU 80286 em sua placa-mãe que alimentava o Homebase BBS. Fornecia downloads de software antivírus, suporte técnico e também permitia que as pessoas carregassem arquivos suspeitos. Basicamente, era o servidor web da época.

Figura 4. Disquetes contendo o software antivírus McAfee e várias amostras de vírus. Os direitos autorais da imagem pertencem a Dave Johnson. Usada com sua gentil permissão.

As diversas faces de John McAfee

Você provavelmente está se perguntando que tipo de pessoa era John McAfee - antes de receber uma má reputação por outras questões. Existem alguns links no início deste post nos quais conto minhas experiências trabalhando para John, mas essas linhas foram escritas principalmente para capturar momentos que eu não queria esquecer e não para definir a pessoa. E como ele realmente era?

O Sr. McAfee era alguém amável. Em diversas ocasiões me deparei com ele realizando pequenos atos de caridade, desde dar algum dinheiro a um sem-teto até simplesmente falar com eles. Sem zombaria ou algo assim. Apenas falando ou, em alguns casos, apenas ouvindo.

O Sr. McAfee era inconstante. Frequentemente, tínhamos discussões acaloradas sobre a direção de algo em um dos programas. Eles geralmente terminavam tão rapidamente quanto começaram, e não houve ressentimentos depois.

O Sr. McAfee era muito inteligente. Ele foi capaz de assimilar rapidamente todos os tipos de conhecimento díspares, sintetizá-los e rapidamente apresentar um plano, encontrar uma solução para um problema ou ter uma ideia. Às vezes ele estava errado, mas na maioria das situações ele estava certo. Sua capacidade de responder rapidamente, sem hesitação, tornou os primeiros associados da McAfee ágeis e capazes de superar seus concorrentes.

O Sr. McAfee costumava ser muito imprudente. Embora sua perspicácia para os negócios fosse excepcional, sua vida pessoal era bem “bagunçada”, por falta de um termo melhor. Ao contrário de outras vezes em sua vida, quando o conheci e durante todo o tempo que trabalhei para ele, McAfee estava limpo e sóbrio. Para qualquer um que jogue Dungeons & Dragons, eu o descreveria com a seguinte pontuação de acordo com suas características: inteligência 18, sabedoria 3. Ele poderia usar sua inteligência para sair da maioria das situações, mas continuou se envolvendo com elas.

O Sr. McAfee era carismático. Enquanto dirigia a McAfee Associates (e depois a Tribal Voice, a empresa de mensagens instantâneas que ele fundou no Colorado), McAfee inspirou todos nós que éramos seus funcionários. Trabalhamos muito e acreditamos no objetivo, fosse salvar o mundo dos vírus de computador ou ajudar a conectar o mundo pela internet.

O Sr. McAfee era um pouco idiota, às vezes. Frequentemente, ele adotava uma abordagem de competição do tipo "negócio é guerra", contando com o intelecto para superar seus possíveis inimigos. Essa abordagem funcionou nos primeiros anos da McAfee Associates, mas não foi adaptada a um setor em que os relacionamentos deviam ser construídos com base na confiança e na cooperação.

Figura 5. Trabalhando na McAfee Associates, por volta de 1990. A imagem à esquerda é de John McAfee e o autor deste artigo à direita. (Os direitos autorais da imagem pertencem a Morgan R. Schweers. Usadas com permissão. O álbum completo está disponível no Flickr.

John McAfee viveu uma vida mais do que lendária, acumulando muitos rumores e acusações ao seu redor. Muitos eram verdadeiros, mas muitos outros eram falsos. O engraçado é que algumas das piores coisas que foram ditas sobre ele caíram nesta última categoria: as histórias sobre ele escrever vírus de computador ou pagar outras pessoas para fazer isso eram falsas; tal coisa nunca aconteceu enquanto eu estava lá. Alegou-se que ele havia exagerado sobre o vírus de computador Michelangelo, mas tínhamos contabilizado algo assim como 60.000 infecções antes da ameaça ser ativada em 1992, e a McAfee Associates era apenas uma das muitas empresas de antivírus na época, e certamente não a maior. Isso não parece grande coisa, pelo menos considerando os números de acordo com o estado dos antivírus no início dos anos 90.

John solicitou uma licença da McAfee Associates em 1993, que se tornou permanente em 1994. No final de 1994, ele fundou a Tribal Voice em Woodland Park, Colorado, que criou alguns dos primeiros programas de mensagens instantâneas (IM) existentes. O interessante sobre o Tribal Voice é que muitos dos recursos comuns hoje em dia em softwares de mensagens instantâneas foram criados naquela tranquila cidade montanhosa, como usar um endereço de e-mail como nome de usuário e atribuí-lo a um endereço IP para poder enviar mensagens de um lado par o outro. Dada a ascensão das mensagens instantâneas e das redes sociais, o impacto de John naquele espaço foi tão grande – ou maior - que seu impacto no mundo antivírus. Infelizmente, o Tribal Voice não foi um sucesso comercial e a empresa entrou em colapso quando a bolha das pontocom estourou em 2001. Essa foi a última vez que John McAfee dirigiu uma empresa de tecnologia, embora atuasse como financista e porta-voz de muitas outras.

Mantivemos contato ao longo dos anos e até dei alguma assistência técnica quando ele deixou Belize em 2012 e voltou para os Estados Unidos. Ele insistiu bastante para que eu o ajudasse a escrever sua autobiografia ao lado de outros ghostwriters, mas recusei, enfatizando o tempo que levaria e o fato de que ele não queria me pagar por isso. A última vez que conversamos foi durante sua campanha presidencial de 2016.

John McAfee era alguém que vivia a vida em seus próprios termos, e acho que isso significava terminar também em seus próprios termos. Embora às vezes ele fosse um idiota comigo, ele também era meu amigo, e sentirei saudade dele.

Um agradecimento especial aos meus colegas Tony Anscombe, Ranson Burkette, Bruce P. Burrell, Nick FitzGerald, Tomáš Foltýn, James Rodewald, James Shepherd e Righard Zwienenberg, não apenas pela ajuda gramatical, mas também pelo apoio moral ao escrever este texto.

Aryeh Goretsky, ZCSE, rMVP
Distinguished Researcher, ESET

Direitos autorais da foto principal: Morgan R. Schweers. Usada com sua permissão.